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Moacir dos Anjos para Aceiro (2022)

A palavra Aceiro, que dá nome à exposição de Abiniel João Nascimento, possui ao menos dois significados. Segundo uso corrente, é prática de limpeza de terreno entre áreas de vegetação que impede que o fogo se alastre em caso de incêndio, risco sempre presente nas zonas rurais em épocas de estiagem. É, contudo, também metáfora para formas de resistência de comunidades no campo ameaçadas, no passado e agora, pela violência de predadores do ambiente natural e de gentes – busca de proteção contra o fogo humano que esgota a terra e mata o diferente. 

Na mostra, os dois sentidos da palavra se articulam e se reforçam, oscilando entre a referência a uma luta comum a muitos povos e a uma luta singular, própria de seu lugar de origem, a Mata Norte pernambucana. Essa foi uma das regiões, afinal, em que a violência colonial do Brasil ganhou seus contornos mais visíveis ainda no século 16, com a introdução do cultivo da cana e da produção do açúcar para atender a demanda crescente do mercado europeu pelo alimento. A multiplicação de engenhos de açúcar em funcionamento, ali e em outras partes do país, requereu um acréscimo constante de mão-de-obra, somente satisfeito com a escravização das populações indígenas, em um primeiro momento, e, logo em seguida, com o afluxo de homens e mulheres africanos roubados de suas famílias e transportados para o Brasil para o trabalho forçado na empresa colonial. 

Aceiro articula, no avizinhamento de trabalhos feitos em mídias diversas – pintura, vídeo, instalação, fotografia, áudio, performance –, informações diversas sobre a violência colonial açucareira e suas atualizações contemporâneas. Em três pinturas, o artista mais sugere do que exibe cenas de destruição e resistência. São imagens que criam atmosfera densa, aproximando ameaça de danos e sensação de encantamento. Ambiguidade também presente na instalação em que um tecido branco encobre da vista um objeto disposto sobre uma mesa ao mesmo tempo que sua superfície flexível é moldada por aquilo que esconde – um instrumento de tortura utilizado contra escravizados no Brasil. Há, ainda, um agrupamento de velhas garrafas de aguardente de cana de açúcar cujos rótulos são evidência gráfica de uma distribuição de possibilidades de vida fundada em preconceitos e interdições, ecoando as hierarquias racistas gestadas ao longo do processo de colonização do Brasil. 

Uma série de antigas fotografias, porém, apresenta imagens de corpos indígenas, pretos e pardos que se movimentam em danças como modos de afirmar origens e de combater seu aniquilamento. Delas, uma somente é exibida inteira. As demais foram editadas para realçar olhares de pessoas fotografadas, dirigidos a quem as registrou à época ou a quem as observa depois de muitos anos: interpelação crítica que atravessa o tempo. Em vídeo sem áudio, ademais, narrativa escrita evoca violências contra a terra e contra modos de existência, mas também resistências à morte e vontade de reconstrução permanente. Combates que se amparam na memória de outras lutas, que de alguma maneira são ainda as mesmas de outros momentos. Memória que, em áudio sem vídeo, ganha a voz de antepassada de Abiniel João Nascimento, mas que fala por tanta gente. Juntos, esses trabalhos são reunião de indícios de que arte é aceiro também. 

Moacir dos Anjos for Aceiro (2022)

The word Aceiro, which names Abiniel João Nascimento’s exhibition, has at least two meanings. According to common usage, it refers to a practice of clearingland between areas of vegetation to prevent the spread of fire in case of a blaze, a constant risk in rural areas during dry seasons. However, it is also a metaphorfor forms of resistance by communities in the countryside threatened, both in the past and now, by the violence of environmental and human predators—seekingprotection against the human fire that depletes the land and kills the different.

In the exhibition, these two meanings of the word interrelate and reinforce each other, oscillating between a reference to a struggle common to many peoples anda unique struggle specific to its place of origin, the Mata Norte region of Pernambuco. This was one of the regions where Brazil’s colonial violence took its mostvisible contours as early as the 16th century, with the introduction of sugarcane cultivation and sugar production to meet the growing demand of the Europeanmarket. The proliferation of sugar mills there and elsewhere in the country required a constant increase in labor, initially satisfied by the enslavement of indigenouspopulations, and soon thereafter by the influx of African men and women stolen from their families and transported to Brazil for forced labor in the colonial enterprise.

Aceiro articulates, in the proximity of works in various media—painting, video, installation, photography, audio, performance—diverse information about colonial sugar violence and its contemporary updates. In three paintings, the artist suggests rather than displays scenes of destruction and resistance. These imagescreate a dense atmosphere, combining the threat of damage with a sense of enchantment. Ambiguity is also present in the installation where a white fabric covers an object on a table while its flexible surface is shaped by what it hides—an instrument of torture used against enslaved people in Brazil. Additionally, there is a grouping of old sugarcane aguardente bottles whose labels provide graphic evidence of a distribution of life possibilities based on prejudices and prohibitions, echoing the racist hierarchies developed throughout Brazil’s colonial process.

A series of old photographs, however, presents images of indigenous, black, and mixed-race bodies moving in dances as a way to affirm origins and combat theirannihilation. Only one of these photographs is shown in its entirety. The others have been edited to emphasize the gazes of the photographed individuals, directedeither at the person who took the photo at the time or at those who view it many years later: a critical interrogation that transcends time. Furthermore, in a silentvideo, written narrative evokes violence against the land and ways of existence, but also resistance to death and the will for permanent reconstruction. Thesestruggles are supported by the memory of other fights, which in some way are still the same as those from other times. Memory, in audio without video, takes onthe voice of Abiniel João Nascimento’s ancestor but speaks for many others. Together, these works demonstrate that art is also a form of aceiro.

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